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Santa Clara de Assis

Espiritualidade Clariana

  1. O Itinerário da Vocação de Clara de Assis


Por Irmã Sandra Maria, OSC


Introdução




O itinerário da vocação é algo fascinante pela maneira como se desenvolve e concretiza na experiência de cada pessoa cristã. Trata-se primeiramente de um mistério e, como tal, só se pode perscrutar alguns dos seus traços mais essenciais e evidentes, seja a partir de acontecimentos exteriores que despertam o chamado, seja especificamente a partir da real experiência interior através da qual Deus se manifesta no chamamento.

Propomo-nos a acompanhar Clara de Assis no itinerário de sua vocação, tentando apontar para a originalidade de um chamado plenamente compreendido por ela própria dentro de um profundo e autêntico sentido bíblico. Nosso enfoque será restrito, portanto, à jornada vocacional de Clara, como se apresenta nas Fontes biográficas, de um lado, e à visão da vocação que Clara mesma apresenta em seus próprios escritos, de outro lado.


1. Itinerário Vocacional de Clara



Traçar as linhas do itinerário da vocação de Clara é um empreendimento que apresenta mais de uma dificuldade. Antes de tudo, a vocação permanece sempre um mistério que nos supera, diante do qual, a certo ponto precisamos calar, incapazes de penetrar os recessos da interioridade, onde o processo do chamado e resposta se desenvolve. Além disso, Clara mesma experimentou a busca de um caminho novo que lhe permitisse concretizar a própria experiência cristã de uma maneira mais radical e profunda, de acordo com o chamado vocacional único e singular, que se manifestou em um contexto de inquietude que a conduziu a avançar para algo mais decisivo. Segui-la neste itinerário, portanto, não é algo fácil. Enfim, as Fontes, tanto biográficas como autógrafas, nos remetem a vários pontos relacionados à vocação de Clara que necessitam ser elucidados, tais como: inspiração e misericórdia divina, conversão, fazer penitência, seguir Jesus Cristo e seu Evangelho; somente assim poderemos compreender melhor o contexto da experiência do chamado vocacional de Clara.

É preciso iniciar por um acompanhamento quanto possível concreto da evolução interior de Clara, através dos acontecimentos exteriores que nos são apresentados, desde a sua vida na família, de origem nobre, até a sua permanência perseverante, pobre, contemplativa e enclausurada no claustro de São Damião, com a concretização do chamado original que ela experimentou, dando origem à única Ordem religiosa na Igreja que teve uma Regra aprovada com o nome de uma mulher.

A Legenda e o Processo de Canonização, como fontes biográficas principais e interligadas pelos testemunhos diretos, apresentam-nos traços essenciais do itinerário vocacional de Clara. Por meio dessas Fontes, podemos reconhecê-la como alguém particularmente dotada pela natureza e pela graça, decidida e corajosa, que assume com firmeza a vocação à qual se sente chamada, mesmo tendo encontrado obstáculos não comuns.

No seio de uma família nobre, recebe uma esmerada educação, fundamentada nos valores cristãos e, bem jovem, já havia elaborado um modo de vida de acordo com a espiritualidade leiga penitencial que florescia em sua época: sua vida é devota e honesta, penitente e misericordiosa. Dedica-se à oração e às obras de caridade, pratica o jejum e algumas formas de penitência, recusa com firmeza todas as propostas de casamento, desejando viver a virgindade1 . Seu comportamento, nos moldes da cultura cortês-cavalheiresca de sua época, é descrito como honesto e de boa fama, gentil e cortês. É discreta, reservada e silenciosa, estimada por todas as pessoas, tanto no palácio da família situado na praça de São Rufino em Assis, como fora. De sua própria mãe, Hortolana, recebeu os fundamentos de tal formação, ela que era mulher de oração, peregrinações, trabalho e cuidado para com os pobres. Nisto, as duas se reconhecem naquelas formas de vida e piedade leiga, praticadas de maneira típica pelas mulheres medievais, sem ingressar num mosteiro.

Entretanto, existe algo a analisar, para além deste comportamento típico. Alguns detalhes elencados pelas Fontes nos ajudam a perceber aquilo que não está escrito sobre o segredo interior de uma busca e inquietude mais profundas e autênticas de possibilidade de vida cristã. São detalhes que se manifestam em práticas que ultrapassam ou mesmo contrariam as normas familiares. Vejamos alguns exemplos.

A família de Clara era rica; ela e a mãe visitavam os pobres e faziam generosas doações. Mas Clara, não satisfeita com isso, mandava a eles alimentos dos quais se privava2, dando a impressão com isso, que sentia a necessidade de oferecer algo seu, significando uma real partilha, através da qual visse alterado seu estilo e padrão de vida rica e nobre, em privações e jejum.

Além disso, Clara, mesmo sendo uma bela jovem, gostava de estar sempre em casa escondida, porque não queria ser vista; apreciava falar das coisas de Deus, fazia tudo por adiar o casamento, rejeitando as propostas da família, porque havia decidido permanecer na virgindade3. Não era a família que ocultava Clara, ao contrário, os parentes tratavam de evidenciar sua beleza para casá-la na nobreza. O escondimento e a virgindade são uma escolha pessoal de Clara.

Estes procedimentos manifestam um posicionamento crescente e decisivo, perante a presença de um apelo interior que foi se tornando sempre mais forte. O mistério de um chamado interior vai tomando configuração na resposta concreta que ela passa a dar. Neste sentido, a originalidade do comportamento de Clara culmina com os encontros secretos que manteve com Francisco. Clara os manteve clandestinos e sigilosos para evitar que a família interferisse em sua decisão, amadurecida ao longo dos contatos, cujo teor era a conversão para o seguimento de Jesus Cristo4.

Se é impossível precisar quando e como se deu o chamado pessoal que Deus dirigiu a Clara, mais concreto é perceber como, através desses comportamentos, emerge uma decisão firme e convicta, para a qual a opção evangélica de Francisco aparece como uma forma de dar concretude aos anseios que estavam em seu coração. Sua profunda busca a conduzia rumo a uma direção arriscada e perigosa, incompatível com sua condição de nobreza e com o futuro que normalmente lhe estaria reservado. Por isso, tinha consciência de estar fazendo algo que os seus familiares não aprovariam, mas manteve fixo o olhar na meta que desejava alcançar.

A pregação de Francisco de Assis estava despertando uma significativa efervescência vocacional. Sua opção de pobreza evangélica e seu ensinamento provocavam por parte de homens e mulheres grandes mudanças de vida. Clara foi também tocada de alguma forma, procurou Francisco e recebeu orientação, decidindo-se livremente pelo seguimento de Jesus Cristo. O testemunho de Francisco, portanto, está na origem da vida nova iniciada por Clara e isso ela mesma afirma em seu Testamento5. Nos encontros secretos, ele emulava Clara a se converter a Jesus Cristo6, e isto, no contexto evangélico pregado por ele próprio, significava encorajá-la a deixar tudo, vender seus bens e dar o resultado aos pobres, para seguir Jesus em pobreza; foi o que ela fez7. O modelo da vocação pela qual Clara opta é idêntico ao de Francisco: o seguimento de Jesus Cristo. Assume então, um estilo de vida que implica mudança de condição social, provocando um rompimento radical com a família, pois os projetos que esta nutria foram realmente os maiores obstáculos enfrentados em sua vocação; obrigam-na a escolher a estratégia da fuga, como única maneira de dar início a uma vida de radicalidade evangélica, à qual ela se entregaria, sem certezas ou planos, ao essencial que é o seguimento de Jesus conforme proposto nos Evangelhos.

Aqui chegamos, por fim, às atitudes mais ousadas de Clara: a fuga de casa na noite de domingo de ramos de 1211, programada com Francisco8, e a venda de sua herança9, gestos que extinguem completamente as pretensões de um casamento que viesse a ampliar as riquezas e alianças familiares. Clara foge de casa para ser consagrada a Deus na igrejinha da Porciúncula; Francisco corta seus cabelos e a conduz ao mosteiro beneditino de São Paulo das Abadessas. Ali permanece pouco tempo e a família tenta, de todas as formas, fazê-la retornar10, sem resultados. Depois vai para o Mosteiro de Santo Ângelo de Panzo, onde se junta a ela sua irmã Catarina (depois chamada Inês por Francisco)11, agravando ainda mais as tensões familiares, tanto que as duas enfrentam novo assalto, mas permanecem firmes na decisão.

Finalmente, ainda com a orientação de Francisco, passam a residir em São Damião, igrejinha reconstruída por ele e tem origem o novo estilo de vida evangélica feminina, com a vinda de novas companheiras. Torna-se evidente que todo esse gradativo processo foi cheio de tensões e dificuldades, fruto de uma busca intensa e prolongada, de um amadurecimento interior, discernido especialmente a partir da opção feita por Francisco.

O modo como Clara concretizou sua vocação evangélica nos quarenta e dois anos de vida reclusa em São Damião, brilhando pelo testemunho de uma opção radical e toda singular, ilustra bem o presságio ou intuição que a mãe Hortolana, durante a gravidez e próxima do parto em que daria à luz sua primeira filha, tivera a respeito de uma missão cristã original, como luz que iria iluminar toda a vida da Igreja; por isso, no batismo, dera a ela o nome não comum na época, de Clara12. Além disso, o designativo de Cristã13, com que Francisco comumente referia-se a Clara, ilumina e comprova esse mesmo testemunho evangélico, segundo uma compreensão neotestamentária que vê cristãos e cristãs como eleitos de Deus, escolhidos, chamados e convocados para realizar uma missão. É esta ideia de vocação divina na Bíblia que aparece no pensamento de Clara, e que ela expressa em seus escritos, quando se refere à vocação à qual foi chamada.


2. A Vocação nos Escritos de Clara

Na teologia e na literatura espiritual da época medieval não é comum nem frequente o emprego dos termos vocare (chamar) e vocatio (vocação), em sentido bíblico. Vocação não ocorre uma única vez nos escritos pessoais de São Francisco e o verbo vocare na acepção de chamamento divino aparece uma vez na Regra não Bulada. Celano, na Vida Primeira de São Francisco, aludindo à linguagem enigmática que Francisco empregava para falar de sua conversão, apresenta o termo vocatio (única vez): “Era absolutamente necessário que se cumprisse a vocação evangélica naquele que haveria de ser ministro fiel e autêntico do Evangelho”. Clara de Assis, em seus escritos, no entanto, apresenta esses termos de forma muito precisa. Vocação (vocatio ou vocationem) aparece cinco vezes no Testamento de Clara14. Vocare (chamar, nas flexões latinas vocavit, advocavit, vocaverit: chamou, chamar)15 aparece três vezes no Testamento e uma na Segunda Carta a Inês de Praga. Clara emprega estas expressões em direta acepção bíblica, como até mesmo o comprovam duas citações expressas do Novo Testamento (cf. 1Cor 1,26; 2Pd 1,10)16: “Reconhece a tua vocação” e os termos unidos: “Vocação e eleição”. Para perceber melhor a visão de Clara acerca da vocação, vejamos, em síntese, o sentido bíblico da vocação.

O termo chamar (vocare) significa, no hebraico, muitas vezes, uma eleição, uma vocação (vocatio) para determinada função, um chamado que Deus dirige a quem Ele escolhe para si e confia uma missão. Portanto, na origem da compreensão bíblica da vocação há uma eleição, uma escolha divina. A vocação é um chamado pessoal que Deus dirige à consciência individual mais profunda, produzindo uma transformação nas condições exteriores e também interiores da existência da pessoa que é chamada, como aparece na vocação dos profetas e profetisas e de alguns reis.

O Novo Testamento apresenta e aprofunda este mesmo sentido da vocação. Aponta o seguimento de Jesus e a vida cristã como a culminância da ideia de vocação divina na Bíblia. Jesus, o escolhido e enviado do Pai, através do chamado pessoal, reúne os apóstolos e discípulos; os Evangelhos apresentam a vocação como um apelo a seguir Jesus num caminho novo (Mc 4,18-22; Mc 3,13-18; 8,34-35; 10,21-31; Lc 9, 59-62; 10,1-20); “há muitos chamados, mas poucos escolhidos” (Mc 10,31). Paulo coloca um paralelo entre “apóstolo por vocação” e “cristãos por vocação” (Rm 1,1.7; 1Cor 1,1-2), “chamados por Deus” (1Cor 7,24) e “eleitos” (Ef 1,11). Na teologia paulina distingue-se a única vocação cristã, no seio da qual há diversidade de dons, ministérios, carismas e operações; mas só existe um Corpo e é um só o Espírito que age e inspira a diversidade (1Cor 12,4-13). A teologia joanina coloca a Igreja por excelência como a “chamada” (ekklesia), a “eleita” (ellekte) (2Jo 1); todos os que nela ouvem o chamado de Deus, cada qual na sua missão, respondem à única vocação da Igreja.

No seu Testamento, Clara de Assis faz uma retrospectiva de sua vocação pessoal e daquela de suas irmãs, em que aparecem evidentes as conotações bíblicas dos termos que utiliza. Em primeiro lugar, reconhece a vocação explicitamente como um dom, uma graça: é o maior dentre todos os benefícios recebidos de Deus! Convida, portanto, em consequência disso, a reconhecer a própria vocação17. Prossegue, apontando a vocação como seguimento de Jesus Cristo: “O Filho de Deus se fez para nós o Caminho”, mostrado e ensinado por São Francisco, “que o amou e seguiu de verdade18. A própria “Forma de Vida” é “observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo19.

Clara vê em perspectiva os mesmos benefícios de Deus, operados na conversão dela e das irmãs por meio de Francisco, quando, ainda antes dele ter irmãos, profetizou a respeito delas: “Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial em toda a sua Igreja20. Na sequência, convida a “considerar a copiosa bondade de Deus” que, “em sua imensa misericórdia e amor”, revelou a Francisco essas coisas sobre “nossa vocação e eleição”; pensa nas irmãs futuras, afirmando que Francisco teve essa intuição original não só referente a elas, mas também a todas “as outras que haveriam de vir, na santa vocação que Deus nos chamou21. Seguindo a teologia petrina, Clara coloca a vocação como eleição divina, como um chamamento e escolha de Deus.

Depois, desenvolve a ideia evangélica da vocação como um “talento” (Mt 25,15) que deve ser restituído ao Senhor multiplicado. Retorna aqui o sentido de dom, graça, carisma, já apresentado no início do Testamento. Segue salientando o compromisso de ser “modelo, exemplo e espelho”, testemunhando o chamado “para os outros e também para as irmãs que Deus vai chamar para a nossa vocação, para que também elas sejam exemplo e espelho para os que vivem no mundo22. A vocação é retomada, portanto, na acepção bíblica, como missão e testemunho.

Além disso, é fundamental sublinhar que para Clara, a vocação nasce pela “inspiração divina” ou por sua peculiar “iluminação”23 e é sempre devida a Deus; algumas vezes afirma que Deus chamou ou chama, outras vezes é o Espírito Santo quem chama24. Coloca a vocação sempre muito próxima à conversão, exigência radical do seguimento de Jesus Cristo25.


3. Inspiração Divina, Conversão, Seguimento de Jesus Cristo, Pobreza



É interessante nos determos para aprofundar agora em que sentido Clara usa os termos inspiração divina e conversão, ao falar de sua própria vocação e das irmãs que com ela compartilharam o mesmo ideal. Para compreender melhor a conotação evidentemente evangélica de sua opção, é necessário fazer uma breve indicação de sua concepção do seguimento de Jesus Cristo na escolha radical de pobreza.


3.1. Inspiração Divina


O mistério divino do chamado que Deus dirigiu a Clara foi concretizado no desabrochar de um carisma claustral contemplativo, caracterizado pela pobreza evangélica e pela unidade das irmãs no ideal de sororidade. Contemplação, pobreza, sororidade e clausura são elementos fundamentais do novo estilo de vida iniciado por Clara. O nascimento de uma Ordem religiosa tão original e inovadora frente ao modelo monacal da época provém da graça do Espírito ou, se quisermos usar as expressões de Clara, surge da “inspiração divina” levada a sério e assumida por ela e pelas “irmãs que o Senhor lhe dera”26. Quando a inspiração divina foi experienciada por Clara como um carisma, produziu certas estruturas humanas; em primeiro lugar um novo estilo de vida religiosa na Igreja, depois uma Forma de Vida (Regra) e os escritos espirituais. Clara teve convicção do carisma que recebeu, de sua singular vocação que proveio de Deus como “inspiração” e “iluminação”, como uma graça clara e única, responsável pela infusão de uma força interior de decisão.

Clara afirma também que esta graça da vocação foi mediada por Francisco e descreve o papel que ele teve no seu itinerário vocacional, mas ressalta o rumo que ela “livremente”27 assumiu com suas irmãs; por isso a graça da vocação tornou-se carisma dela própria no grau mais pleno possível. Há vários exemplos que demonstram a autonomia e a autoridade de Clara quanto a sua escolha de vida. Antes ainda de ter se encontrado com Francisco, já assumira com muita clareza uma espécie de programa de experiência religiosa e já havia começado sua jornada ao longo deste caminho.

Clara nunca fala de si mesma como fundadora, mas atribui a Francisco a autoridade pelo tipo de vida que ela e as irmãs livremente abraçaram. Os testemunhos biográficos mostram como as outras pessoas perceberam melhor o seu papel de fundadora e mãe da Ordem que, tendo gerado muitos filhos e filhas para o Senhor, tornou-se genitora fecunda28. O fato de Clara não fazer distinções entre o seu papel e o de Francisco evidencia que não existem dois carismas de vida evangélica, clariano e franciscano, mas um só: um projeto de vida evangélica que reúne franciscanos e clarissas em uma mesma família espiritual29. A evolução da vocação de Clara como um carisma teve um aspecto desconhecido por ela, cujos resultados não poderia prever. A inspiração inicial foi seguida por outras intervenções divinas, que confirmaram a iluminação primeira e moveram Clara a compreender suas consequências e resultados: a fundação de uma nova Ordem religiosa, na qual há a intenção de seguir o mesmo chamado do Espírito, de assumir um caminho novo inaugurado por essa particular compreensão do Evangelho e da vida cristã, que é o seguimento de Jesus Cristo em pobreza, sororidade, contemplação e clausura.


3.2. Conversão


Na Bíblia, metanoia, traduzida por penitência ou conversão, é a atitude requerida para obter o perdão. No Novo Testamento, o anúncio do Reino é seguido pelo convite à metanoia, conversão, mudança de vida e mentalidade. A tradição monástica medieval possuía uma concepção de conversão como fuga do mundo e ingresso na vida monacal. Francisco expressa a conversão como “fazer penitência”, quer dizer, afastar-se da vida de pecado. A fuga do mundo não é o objetivo primordial de Francisco, mas condição indispensável para melhor seguir o Evangelho de Jesus Cristo na vida apostólica itinerante, conforme ele se sentiu chamado com seus companheiros30.

Clara usa os termos conversão ou fazer penitência31 como referenciais da mudança de vida que se deu a partir de sua vocação; na verdade, para ela, fazer penitência não quer dizer afastar-se do pecado, pois já vivia uma vida de virtude antes de sua opção evangélica radical. Para compreender mais a fundo a personalidade de Clara e das irmãs no momento desta passagem de uma condição de vida a outra, é importante sublinhar o seu amor por Jesus, a quem querem seguir; isto lhes permitiu serem fortes nas tribulações e dificuldades enfrentadas, não temendo pobreza, trabalho, tribulação, humilhação e desprezos. Houve em Clara e nas irmãs uma profunda mudança de vida e de mentalidade, uma transformação interior, uma opção evangélica radical, tudo assumido com alegria e entrega: “julgávamos tudo isso as maiores delícias32. Clara, portanto, concebe a conversão como o início de uma vida nova, como o momento decisivo que lhe permitiu concretizar a sua vocação.


3.3. Seguimento de Jesus Cristo


Francisco foi o primeiro na Igreja a receber a compreensão peculiar de uma vocação como seguimento de Jesus Cristo na pobreza evangélica. Isso foi igualmente o que atraiu Clara: foi essa a essência daquilo que ele lhe pregava nos encontros secretos e que ela assumiu como fundamento primeiro de sua Ordem e de seu carisma. Em seu Testamento, ao recordar sua conversão, Clara destaca o seguimento de Jesus Cristo como o essencial de sua vocação. É também o tema central de seus escritos e de sua espiritualidade33. A ruptura que ela realizou foi o ponto chave e a condição indispensável para realizar a grande aventura de viver o Evangelho no seguimento de Jesus Cristo.


3.4. Pobreza evangélica


O projeto de vida de Clara destaca-se por uma profunda identidade: a pobreza evangélica. É pobreza concreta que se traduz no estilo de vida, no trabalho manual, na renúncia de toda propriedade e no nada possuir como seu. Clara muito se empenhou para ver garantido, mesmo juridicamente, este aspecto fundamental do seguimento de Jesus Cristo. Reafirma no Testamento e na Forma de Vida o que conquistara com a aprovação e confirmação do Privilégio da Pobreza nos anos anteriores; solicita à Igreja ajudar a ela e às irmãs a seguirem a pobreza de Jesus34.